Não é de hoje a impressão de que Cláudio Assis faz quase o mesmo filme desde sua estreia com Amarelo Manga (2002). Já em 2011, quando estreou Febre do Rato, seu foco em peculiaridades/perversões sexuais e retratações “folclóricas” de situações de pobreza e degradação no interior ou na capital pernambucana já atingiam um ápice autorreferente. Em Piedade, seu quinto e mais recente filme, lançado no Festival de Brasília em 2019, essa sensação permanece. Mas enquanto nos seus primeiros filmes as situações mostradas tem aquela cara de exploração da realidade, parece haver aqui uma busca por um cinema mais evidentemente propositivo e, porque não, conciliador – algo que ele já havia ensaiado no desfecho de Big Jato (2016).
Em Piedade acompanhamos um grupo de moradores de uma comunidade com o nome que dá título ao filme. A matriarca Dona Carminha (interpretada por Fernanda Montenegro) e seu filho mais velho Omar (Irandhir Santos), comandam o bar Paraíso do Mar, que se torna alvo de um empresário (Matheus Nachtergaele) de uma petroleira com interesse em comprar o terreno. Vem à tona a possibilidade de um filho desaparecido – e, nesse caso, herdeiro – retornar ao lar. Esse filho (Cauã Reymond), atualmente dono de um cinema pornô e totalmente desinformado do tal vínculo familiar, acaba sendo contatado pelo empresário, levando as histórias a se cruzarem irreversivelmente.
Apesar de não abandonar suas preferências por planos zenitais e por esse “voyeurismo underground” pré-calculado, Piedade pode ser seu filme de decupagem mais contida e eficiente até hoje. Ele preserva o realismo espontâneo da cena ao mesmo tempo em que a ação se resolve inteiramente dentro de um plano que está sempre se renovando. A coreografia das cenas às vezes é claramente difícil, mas nunca está lá pra chamar atenção e, sim, para manter o foco inteiramente nos atores – e como esses estão muito bem, acaba sendo é uma vantagem. Claro que não deixa de ser foçado colocar Reymond como pai de Gabriel Leone – e a insistência em gírias pernambucanas (só contar a quantidade de “vei” que sai da boca de Leone) não ajuda a tornar o texto mais verossímil.
Juntar a tradição de cinema naturalista do diretor com esse plot novelesco de filho perdido é algo que demora a ser digerido também. Mesmo porque uma dessas histórias nunca vai para frente e parece sempre existir em função de uma fraca criação de contexto (algo em que Aquarius, por exemplo, é uma aula). Já a parte do meio ambiente é suficientemente assumida em suas alegorias humanas e sociais e permeia organicamente diálogos e símbolos.
É nessa camada de protesto ambiental que Piedade se sai bastante funcional. O roteiro de Hilton Lacerda (colaborador antigo de Assis) apropriadamente relaciona a pegada sentimental da trama com essa ideia clássica de preservação do espaço. E os temas são naturalmente correlatos: proteger os seus, defender a natureza, reencontrar suas raízes. Tudo faz parte de um mesmo conjunto e a encenação entende bem essas relações e concebe alguns momentos contemplativos particularmente imersivos.
Não é como se o próprio Cláudio Assis de Big Jato já não estivesse falando de algumas dessas coisas, mas a mitificação das presenças de peso aqui (obviamente Fernanda carrega 75% disso) cria essa áurea de urgência e também de legado. E, não, Piedade não tem nem estofo o suficiente para segurar esse peso, até porque, mesmo com a direção mais contida, não parece se desafiar a ver a realidade sob uma ótica que não pareça aquela velha idealização de um naturalismo anos 2000. Falta, enfim, uma direção que olhe para esse mundo – o qual julga observar tão criticamente – não através de um retrovisor mas com pelo menos um par de óculos.