Houve um tempo em que Neil Gaiman era quase uma entidade. Daquelas que a gente reverencia em silêncio, segurando um encadernado de Sandman com a mesma devoção de quem segura um artefato sagrado. Mas os tempos mudam, e os deuses caem. Talvez por isso a segunda temporada de Sandman, na Netflix, pareça tanto um funeral anunciado. Não só do seu protagonista, Morfeu, mas do próprio Gaiman.
Sim, Morfeu ainda tem os cabelos desgrenhados e a voz que parece ecoar do fundo do abismo. Tom Sturridge continua ótimo, mesmo preso num eterno modo “estou sofrendo em silêncio”. Mas a aura que envolvia o personagem, aquela coisa onírica, um pouco poética, um pouco assustadora, vai se diluindo a cada novo episódio. É como se a série estivesse com pressa de enterrar o próprio mito.
A primeira temporada era mais segura. Adaptava arcos lineares, entregava visuais impactantes dentro do possível, e sabia quando dar um passo atrás para deixar as histórias respirarem. Já a segunda tenta comprimir o incompressível: arcos densos como Estação das Brumas, Vidas Breves e As Bondosas. Histórias que, nos quadrinhos, ganhavam força justamente por sua estrutura fragmentada e quase antológica, aqui viram uma narrativa corrida, carregada de uma solenidade que beira o enfadonho.
Há méritos, claro. O episódio em que Morfeu encara seu pai, o próprio Tempo — interpretado por Rufus Sewell em modo Ingmar Bergman — é visualmente ousado. Jenna Coleman e Boyd Holbrook seguem roubando a cena toda vez que aparecem. Ela como Johanna Constantine, ele como o agora redimido (e irresistivelmente sarcástico) Coríntio. E Freddie Fox, como Loki, parece saído direto de um delírio glam rock: perigoso, fascinante e deliciosamente detestável. Mas esses lampejos são ilhas de criatividade num mar de tom monocromático e ritmo arrastado.

Mais grave, porém, é a sensação de que a série e seu criador tentam se despedir de algo que já não sabem muito bem como sustentar. O arco da queda de Morfeu tem tudo para ser grandioso — culpa, profecias, tragédia grega, fúrias vingativas — mas o texto prefere o caminho da melancolia melosa. E, com o histórico recente de Gaiman, que passou de ídolo incontestável a nome envolto em polêmicas, é difícil não enxergar paralelos incômodos entre a trajetória do personagem e a do autor.
Há algo de mórbido nessa tentativa da série de transformar o adeus de Morfeu em uma elegia para Gaiman. Como se a narrativa estivesse, sem querer querendo, tentando justificar o fim de um ciclo com ares de martírio. No entanto, o efeito é o oposto. O que deveria ser épico vira um suspiro longo demais.
É curioso também como a estética da série, a famosa “cara Netflix”, ajuda a achatar o que era, nos quadrinhos, expansivo e cheio de textura. A vastidão do Sonhar parece cada vez menor, quase claustrofóbica. E a insistência em costurar tudo num arco dramático contínuo tira o encanto dos pequenos contos, que sempre foram a alma de Sandman.
No fim, Sandman não é uma adaptação ruim. Está longe disso. Mas também não é o sonho que prometia ser. E à medida que caminha para o fim — o Volume 2 já está no ar, e um episódio bônus chega dia 31 de julho — fica cada vez mais evidente que o que era para ser um delírio sensorial virou uma despedida cansada. Um suspiro a mais para um mito que, talvez, já esteja pronto para acordar.