Sobreviventes é um drama luso-brasileiro que acompanha um grupo de homens e mulheres, negros e brancos, que escaparam do naufrágio de um navio negreiro e se veem isolados em uma ilha deserta, em algum lugar do Oceano Atlântico. Durante o isolamento, a convivência entre senhores e escravos é capaz de alterar valores morais e sociais da realidade do século XIX.
A realização de uma obra utópica ambientada no período mais desumano da história do Brasil, que coloca negros e brancos em uma tensa e desafiadora convivência em uma ilha desconhecida após o naufrágio de um navio negreiro, é uma ideia repleta de possibilidades deveras interessantes. É necessária toda a sensibilidade artística e racional ao abordar questões que ainda pesam na sociedade brasileira, deixando resquícios impossíveis de se ignorar, além de criatividade na forma como tal conteúdo, constantemente revisitado por produções audiovisuais, deva aqui ser tratado. Sobreviventes, lançamento póstumo do cineasta português José Barahona – que faleceu em 23 de novembro de 2024, conhecido por filmes como “Estive em Lisboa e Lembrei de Você” (2015) e “O Manuscrito Perdido” (2010) – embarca no desafio de ficcionalizar um conflito ambientado no último século do comércio de escravos entre Portugal e Brasil, entregando um produto repleto de boas intenções, mas que constantemente se vê atrapalhada por simploriedades narrativas ao procurar tecer críticas óbvias.
Co-assinado pelo próprio Barahona e pelo roteirista José Eduardo Agualusa, o texto de Sobreviventes utilizado ao máximo o seu estoque de alusões aos conflitos entre senhores e escravos, principalmente em fazer do conflito entre os adversários em cena – ora silenciosamente metódico, ora agressivo -, um jogo de xadrez que é insistentemente mostrado ao longo da narrativa, não chegando a ser uma referência medíocre, mas, de tanto que é utilizada, soa como infantil. O mesmo se dá quando o filme, pasmem, se vê na necessidade de explicar o óbvio, como os efeitos nocivos e criminosos do racismo e misoginia, temáticas estas que de fato funcionam quando são expostas de maneira nua e crua por produções que se comprometem com a ousadia narrativa, mas quando acompanhadas de uma linguagem praticamente didática, como acontece aqui, estão longe de passar o grau de seriedade necessário para fazer o discurso funcionar. Por outro lado, existem momentos em que as críticas à nobreza e à burguesia daquela época, que espelham na sociedade brasileira da modernidade, são elegantes e acompanhadas de bons diálogos, principalmente vindos do personagem Fradique Mendes, interpretado por Miguel Damião, um dos co-protagonistas que o roteiro não deixou se transformar em mais um exemplo de “branco salvador”, por muito pouco. Quando entre em cena, a comunidade formada por escravos que escaparam do navio se mostra um modelo atraente aos olhos da sétima arte de sociedade movida pela necessidade de sobrevivência e subversão de valores, pondo o branco racista e a igreja racista no lugar de inferioridade, deixando evidente a trama utópica idealizada pela escrita que funcionaria por si só, sem necessitar de tantos incrementos para classificar o filme como anti-imperialista.

É sábio afirmar que Sobreviventes se divide entre uma narrativa que deseja expor suas críticas e alusões, combinadas a um roteiro que procura transformar situações de sobrevivência em uma interessante luta de classes e valores, e uma história que se atrapalha ao narrar suas ideias, a ponto de parecer mais expositiva e verborrágica do que sutil e assertiva em seus argumentos. Por outro lado, há breves momentos de sutileza e contemplação narrativa, como o momento em que a personagem de Anabela Moreira, Dona Emília, uma senhora de engenho escravista ao se ver na necessidade de viver em sociedade na ilha, comemora uma pesca realizada com sucesso tomando um banho de mar, despida de suas vestimentas de cima e exibindo o corpo saudável e sem qualquer marca, enquanto Vissolela – interpretada de maneira visceral pela atriz Zia Soares, uma mulher negra que assumiu o controle da comunidade e decidiu poupar a vida dos brancos desde que os homens trabalhassem, resolve comemorar da mesma maneira, porém totalmente despida, exibindo as cicatrizes de uma servidão forçada e repleta de dor. É uma cena interessante e bem filmada que se espera ver em filmes que abordam a temática do racismo, cujo a ausência de diálogos desnecessários tornam o momento ainda mais forte. A relação entre os personagens de Allex Miranda e Kim Ostrowskij, que vivem, respectivamente, o protagonista João Salvador e Inês, filha de Dona Emília e companheira do herói negro, pode parecer superficial e desprovida de química, mas carrega um peso simbólico que passa a fazer mais sentido quando o grupo inicial de sobreviventes encontra a comunidade composta por ex-escravos que escaparam do navio.
Fascinado pela contemplação da imagem de sua obra mais bonita visualmente, José Barahona se mostrou orgulhosamente equipado de recursos imagéticos para de sobressair de um discurso promissor que acaba se tornando superficial e contraditório dentro das próprias palavras. Sobreviventes é uma obra que evidencia a imagem como um dever da própria produção e escape do foco de uma narrativa que tinha seu potencial, mas que acaba se perdendo em meio ao próprio almejo de se criar uma utopia ambientada dentro do Brasil escravista, com frequentes alusões à sociedade moderna e mostrar (mesmo de maneira óbvia e expositiva) que pouco se mudou do século XIX para cá. Aqui, o trabalho dentro de uma estética clássica e em preto e branco subvertem o lado presunçoso da produção ao contar com escolhas formais de fato assertivas. Barahona soube enquadrar dramas e conflitos dos personagens em cena, além de posicioná-los de forma quase teatral, valorizando minuciosamente cada elemento.

Há aqui um trabalho de direção realizado em perfeita união com a cinematografia de Hugo Azevedo, resultando em planos americanos e close-ups que destacam o comportamento dos personagens e expressões de raiva, medo, angústia, injustiça e irracionalidade destes, contanto também com primorosos planos abertos que também intensificam os dramas de sobrevivência e o ambiente que é parte primordial da narrativa. A iluminação teatral bem equilibrada e distribuída, que nos permite acompanhar o que se passa em cena em todos os momentos da trama é funcional dentro da proposta da fotografia em preto e branco. A trilha sonora de Sobreviventes também é um ponto de destaque por, principalmente, contar com a marcante voz do lendário Milton Nascimento.
Retomando as ressalvas que se têm a respeito do roteiro do longa-metragem, é possível identificar certas incoerências em relação à alguns personagens, como, por exemplo, o navegador Gregório (Roberto Bomtempo), que, no primeiro momento, pareceu se importar com a sobrevivência de João Salvador (Miranda), mas, de uma outra para outra, revela desprezo pelo protagonista. A figura do Padre Angelim (Paulo Azevedo) é importante para a trama, mas seu racismo e contraditoriedade religiosa são explorados da maneira mais superficial possível. No mais, é importante frisar que o filme conta com um elenco totalmente esforçado que consegue se entregar de corpo e alma ao projeto e até superar uma escrita bagunçada para seus personagens.
Dotado de uma abordagem utópica que seria mais louvável caso não houvesse excessos de críticas expositivas, alusões repetitivas e um maior esmero no desenvolvimento de seus personagens, Sobreviventes, no entanto, chega a estabelecer uma união harmoniosa entre forma e conteúdo, sendo também um belo legado de José Barahona para o cinema luso-brasileiro.