dom, 22 dezembro 2024

Crítica | Tudo que você podia ser

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Recentemente, ao ler o livro A Linguagem Cinematográfica de Marcel Martin, tive vários insights sobre o cinema. Martin argumenta que um filme precisa de algo além da mera competência técnica para alcançar uma verdadeira existência artística. Ele enfatiza que, mesmo com todos os recursos técnicos disponíveis no cinema (contemporâneo), um filme sem alma não pode realmente “existir”. Abel Gance complementa essa ideia ao afirmar que “não são as imagens que fazem um filme, mas a alma das imagens”. Isso me fez refletir sobre como filmes simples, que utilizam elementos formais básicos do cinema, conseguem tocar profundamente o espectador, porque a maneira como o autor aponta a câmera e filma é feita com alma. Foi diante desse sentimento que finalizei o longa Tudo o que Você Podia Ser, um filme que transita entre a ficção e o documentário e utiliza artifícios formais muito simples, mas que é capaz de emocionar e alegrar qualquer espectador. O filme observa o dia de três amigues, três pessoas queer com suas lutas, conquistas, dores e amores.

Ser queer no Brasil (e no mundo) é, por essência, um ato de resistência, e na arte isso não é diferente. O cinema queer brasileiro, por exemplo, tem se consolidado nas últimas décadas como uma expressão vital e inovadora dentro do panorama cultural do país. Surgindo de um contexto histórico marcado pela censura e pela marginalização, especialmente durante a ditadura militar, o cinema queer emergiu como uma forma de resistência e afirmação de identidades LGBTQIA+. Historicamente, o cinema LGBTQIA+ frequentemente retratou a violência, a discriminação e as dificuldades enfrentadas pela comunidade. Não é que esse tipo de narrativa não seja importante, pelo contrario, esses filmes têm um papel crucial ao denunciar injustiças e dar visibilidade a essas questões que muitas vezes são ignoradas ou silenciadas pela sociedade.

No entanto, nos últimos anos, temos observado um movimento significativo no cinema LGBTQIA+ em direção à diversidade de gêneros e temáticas. Este movimento busca mostrar que a experiência queer não se resume apenas ao sofrimento e à luta, mas também inclui momentos de alegria, amor e cotidiano comum. Filmes que exploram romances leves, comédias e outras narrativas positivas são essenciais para uma representação mais completa da vida LGBTQIA+.

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Tudo que Você Podia Ser parte de um local de leveza e amor, observando com carinho e atenção vidas tão significativas. Embora a narrativa mostre o preconceito vivido diariamente por elus, como a negação de uma mãe e a violência verbal nas ruas, o foco verdadeiro é o amor, a fraternidade, o carinho e a liberdade de existir. A vontade de viver delus, de experimentar a vida, de se arriscar, de curtir, dançar e amar já constitui um ato de luta suficiente. Viver e ser feliz, no país que mais mata pessoas LGBT, é o maior ato de resistência, especialmente com personagens como Aisha, que passou na universidade em terceiro lugar, ou Igui, que vai para a Alemanha realizar seu doutorado. Tudo que Você Podia Ser pondera sobre aceitar a si mesmo e abraçar os seus, em uma luta unida que compartilha dor e amor, mas acima de tudo, acolhe.

A decupagem de Ricardo Alves Jr. é especialmente acolhedora. Sua câmera observa, mas nunca invade; ela escuta e está presente, quase nos fazendo sentir parte do grupo. É uma câmera que não julga, que pertence àquele mundo, respeitando e sendo respeitada por quem está diante dela. Ricardo posiciona a câmera de maneiras que a situação exige. Em alguns momentos, ela está distante, entre paredes e cantos, como se não quisesse acometer aquele momento íntimo; em outros, ela se aproxima, tornando-se parte física da confraternização. Mesmo nos momentos mais vulneráveis, a câmera nunca desvia o olhar. Ela acolhe pelo simples ato de olhar com carinho e atenção, ensinando-nos a acolher, a observar e a dizer que está tudo bem.

Esse formalismo comum, mas delicado e respeitoso, reflete um compromisso com a humanidade dos personagens, retratando suas lutas e triunfos com honestidade e empatia. A presença da câmera, longe de ser intrusiva, reforça a sensação de comunidade e pertencimento. A direção de Ricardo Alves Jr. faz com que o espectador não apenas veja, mas sinta as experiências, ria junto, chore junto e torça junto. Tudo que Você Podia Ser é, como Gance defende, um filme com alma que cria uma conexão emocional profunda e duradoura.

Filme visto a convite da Sinny Assessoria. Tudo que Você Podia Ser estreia dia 20 de junho pela Sessão Vitrine Petrobras.

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Caique Henry
Caique Henryhttp://estacaonerd.com
Entre viagens pelas galáxias com um mochileiro, aventuras nas vilas da Terra Média e meditações em busca da Força, encontrei minha verdadeira paixão: a arte. Sou um apaixonado por escrever, sempre pronto para compartilhar minhas opiniões sobre filmes e músicas. Minha devoção? O cinema de gênero e o rock/heavy metal, onde me perco e me reencontro a cada nova obra. Aqui, busco ir além da análise, celebrando o impacto que essas expressões têm na nossa percepção e nas nossas emoções. E-mail para contato: [email protected]
Recentemente, ao ler o livro A Linguagem Cinematográfica de Marcel Martin, tive vários insights sobre o cinema. Martin argumenta que um filme precisa de algo além da mera competência técnica para alcançar uma verdadeira existência artística. Ele enfatiza que, mesmo com todos os recursos...Crítica | Tudo que você podia ser