Situado no início dos anos 1960, no influente cenário musical da cidade de Nova York, Um Completo Desconhecido (A Complete Unknown) acompanha Robert Zimmerman, um jovem músico de Minnesota que adota o nome de Bob Dylan (Timothée Chalamet). Após conhecer seu grande ídolo do folk, o debilitado músico Woody Guthrie (Scoot McNairy), Dylan caminha rumo à sua ascensão artística, se tornando um dos maiores inovadores musicais do século XX, porém não antes de enfrentar pressões de relacionamentos conturbados e até de parceiros musicais que não encorajam sua inventividade.
É interessante como James Mangold prepara, com notável estudo e apreço pela história que será contada através de uma linguagem fílmica, uma roupagem oposta da sua primeira cinebiografia, Johnny e June (Walk The Line, 2005), para agora caracterizar a verborragia poética de Bob Dylan, em Um Completo Desconhecido (A Complete Unknown). Se no longa baseado na vida e obra de Johnny Cash a narrativa é contada com freneticidade, além de flertar com o rock n’ roll e adotar características do comportamento visceral do Rei do Country, na dramatização da trajetória de Dylan existe um rebuscado sentimento de complexidade amalgamado à calmaria e até mesmo a uma conduta passiva-agressiva para caracterizar a transição do folk clássico para um autoral contemporâneo. Diferentes em matéria de texto e imagem, mesmo sob o olhar de um mesmo realizador – o que o torna um curioso contador de histórias de personalidades, que mascara a mesmice de uma tradicional cinebiografia com a essência de tais figuras – Johnny e June e Um Completo Desconhecido felizmente não se complementam como filmes dentro de um mesmo universo, apesar da importante interação entre Cash e Dylan nesta nova produção, e, até dentro de suas inevitáveis limitações, se consolidam como referências no cinema de biografia que procura nem andar na linha nem ser um estranho em meio à vastidão de obras do tipo.
Mangold é técnico e minucioso ao filmar Um Completo Desconhecido, estabelecendo uma fiel conexão com o próprio folk. É possível notar certas sutilezas na sua direção que mais parecem uma retratação cotidiana na vida do artista, que flertam também com um intimismo que beira a uma suavidade campestre, principalmente em seu primeiro ato, que mostra o início da carreira de Dylan dentro deste neste gênero musical. Quando a história começa a se passar em 1965 adiante, o diretor consegue se adaptar às mudanças comportamentais de seu personagem e adere a transição artística de Dylan com maestria ao fazer uma mesclagem sóbria e, ao mesmo tempo, complexa, tal como o músico, entre o folk e o rock n’ roll. Há de ser admirada a técnica de James Mangold que, apesar de estabelecer um encontro breve, mas memorável, entre Bob Dylan e Johnny Cash, vivido aqui por Boyd Holbrook (James Mangold não cogitou chamar Joaquin Phoenix para reprisar o papel do célebre cantor), não repete em sequer um momento o drama conturbado da sua cinebiografia do Rei do Country. Importante exaltar também como o cineasta valoriza elementos em cena que remetem à época na qual o filme se passa – graças a exímia direção de arte -, desde instrumentos musicais acústicos mais antigos, como cadernos de anotações para composições, roupas, veículos e até mesmo o extenso cenário da representação da cidade de Newport e seu festival de música, na qual Dylan revolucionou a música em 1965 com uma controversa performance elétrica. A fotografia também é um grande fator de influência na imersão do longa, captando melancolia, poesia e cultura através de enquadramentos assertivos e planos semiabertos que valorizam a cena, principalmente nas performances musicais.
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No entanto, há uma discrepância entre direção e decupagem que ocasiona uma edição que almeja ir direto ao ponto, quando a narrativa acelera, a ponto de deixar escapar sutilezas que não gerariam estranhezas, como acontecimentos e encontros rápidos, por exemplo o fato de Dylan já aparecer com um empresário pouco depois de ter seu talento descoberto por Pete Seeger, ou seu encontro e relação apressada com Joan Baez, vivida pela revelação Monica Barbaro que, por outro lado, é tratado com mais minúcia ao longo da projeção, mostrando como Barbaro encara com seriedade o papel da musicista que teve que lidar com a toxidade de uma relação conturbada com Bob. A relação entre Baez e Dylan quanse beira a intensidade, mas poderia ter rendido mais momentos de impacto ou conflito ao longo da trama, que optou por dar mais destaque ao relacionamento do músico com Sylvie Russo, uma releitura da sua verdadeira cônjuge Suze Rotolo, na qual Elle Fanning esbanja emoções e olhares que dizem mais que palavras para esboçar sua insatisfação no relacionamento e o sentimento de estar sendo passada para trás. As relações entre Bob Dylan e suas figuras de inspiração, como Woody Guthrie (Scoot McNairy) e Pete Seeger (Edward Norton) são sinceras e trabalhadas com um grau de sentimentalismo objetivo, que não ultrapassa limites, nem soa como piegas. Edward Norton, inclusive, desempenha seu papel com notável respeito à Pete Seeger e consegue, de fato, se destacar em meio à tantos coadjuvantes.
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Existe uma breve harmonia entre o roteiro, de autoria do próprio James Mangold, em parceria com Jay Cocks, e a condução de Um Completo Desconhecido, onde texto e imagem atingem uma sinergia para levar às telas uma releitura não muito óbvia da vida de um dos músicos mais importantes do folk/rock mundial, deixando de lado trajetórias e prefácios, o que faz jus ao título que não só vem do verso de Like a Rolling Stone, mas da ideia de se fazer um mistério com a história de Dylan, o que quase levou o longa a se deixar escorregar na abordagem mítica, ou quase endeusada, do artista, tal como ocorre em cinebiografias influentes e até premiadas, como é o caso de Bohemian Rhapsody (2018). Há momentos aqui em que olhares e expressões dos personagens secundários para o Bob Dylan de Timothée Chalamet, até mesmo o fato de o roteiro quase entregar resoluções de conflito simples e façanhas do músico realizadas de maneira igualmente rápida e fácil, parece se acomodar com esses escapes tradicionais em filmes deste subgênero preveniente do drama, o que resulta em momentos inevitavelmente enfadonhos, que chegam a conturbar suas próprias escolhas formais de não se rotular como uma cinebiografia padrão.
No entanto, Um Completo Desconhecido dispõe de um texto que mira em uma complexidade e até numa verborragia que se assemelha ao excesso de palavras e ideias das poéticas composições de Bob Dylan, o que pode soar como cansativo, mas também não deixa de ser atraente e contemplativo, principalmente para quem é fã de longa data do músico. Quem cai de paraquedas nesta cinebiografia ou conhece Dylan há pouco tempo, talvez não seja essa a melhor produção para entender sua história antes e depois da ascensão meteórica, já que o longa de James Mangold é mais focado justamente nesta revolução musical provocada pelo cantor.
A interpretação de Timothée Chalamet como Bob Dylan também é um ponto que se fragmenta, tendo boas e regulares nuances. Existe aqui uma oscilação entre uma tradicional caricatura do personagem, que se mostra mais evidente a partir do segundo ato, e o intimista funcional que está mais presente no início da narrativa. Copiar trejeitos, a prepotência do comportamento cansativo do jovem artista genial e seu sotaque característico não chega a ser um duro trabalho para o ator, que se vê à vontade no papel, demostrando serenidade e até uma certa timidez para se sobressair nos diálogos. No entanto, o ator se mostra nem um pouco contido nas performances musicais, interpretadas com vitalidade e emoção em longas sequências que valorizam cada tom atingido por Chalamet tanto na voz quanto no violão. As sequências que mostram Dylan nos palcos são embelezadas pelo espetáculo a parte dado por Timothée Chalamet, além de contarem com uma certa nostalgia, misturada à melancolia e regionalidade dos ritmos que compõem o folk, se tornando intensos e rebeldes no melhor tom possível quando entra em cena a apresentação emblemática do músico no Newport Folk Festival de 1965, a sequência mais bem trabalhada de todo o longa-metragem.
Tenicamente belo e bem representativo, Um Completo Desconhecido, no entanto, é um espelho do próprio artista da qual a história está sendo contada, sendo por vezes cansativa, complexa até demais, repleta de um extenso texto e dotada de um insaciável desejo de se manter fora do padrão. Bob Dylan, por outro lado, continua sendo um artista que foge de padrões e procura escapar de um endeusamento que o filme acidentalmente flerta.