O cinema brasileiro teve seu marco inicial em 19 de junho de 1898, quando Affonso Segreto, recém-chegado de uma viagem à Europa, registrou em filme a Baía de Guanabara. Embora essa película tenha se perdido com o tempo, sua importância histórica permanece viva, consolidando a data como o Dia do Cinema Brasileiro. Inspirado por essa memória, Marcelo Segreto, tataraneto de Affonso — em mais um projeto especial parte do EP Cinemúsicas, Vol. 1 — ao lado de Paulo Miklos, realizou o videoclipe da faixa Uma Vista da Baía de Guanabara, com o objetivo de prestar uma homenagem não apenas ao legado de seu ancestral, mas também ao cinema nacional como um todo.
O videoclipe, que se propõe a celebrar esse momento fundador, utiliza recursos criativos e emocionais para reviver o espírito pioneiro de Affonso. Por meio de fotomontagens elaboradas a partir de arquivos históricos (e artificiais), o trabalho constrói uma narrativa visual que conecta o passado ao presente, transformando imagens da região em poesia audiovisual. O mais fascinante nesse projeto é como ele transcende uma simples homenagem para se tornar uma ressignificação do que foi perdido. A estética do videoclipe dialoga diretamente com os primórdios do cinema, tanto na montagem dos planos quanto na fotografia, que evoca a textura e a essência das obras de outrora. A obra de Marcelo Segreto não apenas celebra uma memória, mas dá nova vida a ela, reafirmando o poder do cinema como uma arte de resistência e perpetuação.
De forma controversa, Marcelo Segreto e sua equipe recorreram à inteligência artificial para compor e recriar imagens, na tentativa de aproximar visualmente o videoclipe ao cenário de 1898. Essa escolha técnica certamente divide opiniões. Por um lado, a utilização de IAs nas artes ainda é um tema sensível, que desperta questionamentos éticos e debates sobre autenticidade. Por outro, é inegável que essas ferramentas se tornaram uma parte integrante do mundo contemporâneo, exigindo dos artistas não apenas criatividade, mas discernimento em seu uso.
Confesso minha relutância inicial diante da aplicação da inteligência artificial na criação artística. Há sempre o receio de que sua presença possa substituir o toque humano, que é a essência da arte. No entanto, o videoclipe de Marcelo demonstra como a tecnologia pode atuar como uma aliada, enriquecendo a narrativa sem desumanizá-la. Em vez de delegar a criação por completo à máquina, Marcelo utiliza a IA de maneira complementar, como um recurso que expande as possibilidades estéticas de seu trabalho.
A canção Uma Vista da Baía de Guanabara, interpretada por Marcelo Segreto e Paulo Miklos, é uma obra que entrelaça música e poesia com uma narrativa introspectiva. Escrita por Segreto, a letra explora com delicadeza a efemeridade e a intensidade de um amor perdido, transformando sentimentos universais em imagens líricas e cinematográficas.
Em poucas linhas, Segreto conduz o ouvinte por um ciclo emocional que reflete a dualidade entre a alegria do encontro e a dor da perda. Há uma idealização quase obsessiva dos momentos vividos, como se cada fragmento de memória fosse revisitado em busca de um significado maior. Essa abordagem confere à canção uma qualidade fluida e cria uma conexão formal muito interessante com sua proposta visual – essa ideia do poder do registro.
A composição não apenas remete à nostalgia de um amor que se desfez, mas também à própria história do cinema nacional. A ambientação da música, que percorre os cantos da Baía de Guanabara, é impregnada de um senso de memória que se manifesta tanto na paisagem quanto nas emoções evocadas. As imagens projetadas remetem ao espírito dos primeiros registros cinematográficos, enquanto simultaneamente evocam os espaços físicos e emocionais compartilhados por uma paixão agora transformada em reminiscência. A canção é, portanto, uma celebração do passado, seja ele coletivo, como o marco histórico do cinema brasileiro, ou pessoal, como um amor que marcou profundamente.
Ao final, a música não apresenta uma resolução definitiva, mas, sim, um convite sutil e poético para explorar o espaço nebuloso entre a nostalgia e o desapego. Ela se configura como uma verdadeira paisagem emocional, evocando, como sugere o título, a grandiosidade e a intimidade de uma vista da Baía de Guanabara.
Marcelo Segreto oferece uma reflexão sensível e profunda, não apenas sobre a fragilidade e o impacto das relações humanas, mas também sobre a capacidade singular do cinema de capturar memórias. A obra se revela um tributo duplo: ao amor que marca e transforma, e ao poder do registro audiovisual, que “imortaliza” o efêmero em imagens que continuam a ressoar mesmo diante do inexorável avanço do tempo (ou pelo menos deveriam). É uma composição que, assim como o cinema em seus primórdios, nos lembra da beleza de olhar para trás enquanto seguimos adiante.