sáb, 13 dezembro 2025

Crítica | Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out

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Antes de tudo, é preciso destacar a qualidade de Rian Johnson como narrador: sua compreensão de que os personagens que constrói, oscilando entre o sério e o absurdo, funcionam como arquétipos de uma certa experiência contemporânea. Se o primeiro Entre Facas e Segredos se debruçava sobre tensões de classe num contexto de ascensão global da extrema-direita, e Glass Onion ironizava a superfície e a performatividade da riqueza, Vivo ou Morto desloca seu eixo para o terreno da religião. Não se trata, contudo, de uma crítica frontal ao catolicismo. O filme está menos interessado em atacar a instituição do que em investigar a fratura entre discurso e prática, entre o que se enuncia como verdade e o que se encena como espetáculo, entre o real e o “disneylandizado”.

Permanece evidente o vínculo de Johnson com o tema do nacionalismo mediado pelo ambiente digital, mas agora sua atenção se concentra nas formas da crença. Seria possível situar essa análise num horizonte sócio-histórico mais amplo, traçando um fio que conecte religião, política e narrativa; ainda assim, o foco aqui é compreender de que modo o cineasta organiza a imagem dentro desse campo. Johnson figura entre os poucos realizadores contemporâneos que ainda confiam na força de uma encenação e de uma montagem capazes, simultaneamente, de esclarecer e de desorientar. Os suspeitos são poucos, o espaço é restrito, os álibis frágeis, e cabe a Benoit Blanc (Daniel Craig, novamente à vontade, à maneira de um Hercule Poirot) recompor o quebra-cabeça.

É nessa pequena cidade que o padre Jud, interpretado com precisão por Josh O’Connor, chega à paróquia do monsenhor Wicks e percebe, desde o início, uma relação inquietante entre aquela figura religiosa e seus fiéis. Com a morte de Wicks, Jud torna-se o principal suspeito e passa a ocupar, ao lado de Blanc, o centro da narrativa. Ainda que o enigma policial seja envolvente, ele não constitui o verdadeiro núcleo do filme. Como em todo suspense, somos instigados a desconfiar de todos e de suas motivações, mas o que está em jogo é uma crise mais profunda: a da fé em Deus, no homem, no outro.

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Johnson materializa essa questão em três cenas exemplares. A primeira ocorre logo na chegada de Blanc. Na igreja escura, enquanto Jud tenta compreender o que aconteceu e tudo parece ruir, o detetive surge e, por meio de um diálogo preciso, introduz a ideia de que o essencial é a narrativa. Aquele templo, que evoca uma aparência medieval, é na verdade neogótico e situado em Nova Iorque: não importa o que ele aparenta ser, mas o que simboliza. A luz amarelada que atravessa os vitrais não aponta para o divino, e sim para a própria noção de fé, a crença como construção inevitável. Para avançar, Blanc também precisa suspender seus próprios pressupostos.

O segundo momento, talvez um dos mais fortes de toda a franquia, acontece durante um telefonema. A cena se inicia sob o registro da comédia: a disposição dos corpos, os cortes rápidos entre espaços distintos, o ritmo do texto. Tudo se transforma quando Jud ouve, do outro lado da linha, o pedido por uma oração. O tom se altera abruptamente: O’Connor fecha a porta, o ambiente se reconfigura, e Blanc testemunha algo decisivo: a fé genuína de Jud.

Com esse universo já estabelecido, chegamos à sequência da revelação, quando Blanc expõe seu raciocínio e esclarece o crime. Mais uma vez, a luz invade o espaço e ressoa como eco da cena inicial, agora como constatação: não se trata, afinal, de um assassinato, mas de um ato de crença. O papel de Blanc como guardião da verdade revela-se também como performance, um lugar dentro da própria narrativa. O que se impõe no mundo, muitas vezes uma mentira, uma história fabricada para atender aos interesses de quem a conta, é aquilo que ganha validade para quem escolhe segui-la.

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Vivo ou Morto se encerra, assim, como a provocação inscrita em seu título: a verdade está viva ou morta? A resposta depende de quem narra e, sobretudo, de quem escuta. Resta-nos torcer, ao fim, para que a maçã de Eva esteja no lugar certo, distante do paraíso já em ruínas.

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