qua, 24 dezembro 2025

Crítica | Vizinhos Bárbaros

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Na Idade Média, o bobo da corte ocupava um lugar paradoxal dentro do poder: era autorizado a rir do rei justamente porque o riso domesticava a crítica. Sua função não era destruir a ordem, mas tensioná-la até o limite do tolerável, dizendo verdades que, em qualquer outro tom, custariam a cabeça de quem as pronunciasse. A comédia nasce e se sustenta nesse espaço ambíguo — um território onde a crítica só é aceita se vier disfarçada, onde o incômodo precisa vir acompanhado de gargalhadas para não ser imediatamente rejeitado.

Esse mecanismo atravessa os séculos e chega intacto ao cinema contemporâneo. Vizinhos Bárbaros entende bem essa lógica e constrói seu discurso político a partir dela. O filme não grita, não confronta frontalmente, não rompe com o conforto do espectador. Ele prefere rir — e, ao rir, revelar. O humor funciona como uma autorização prévia: podemos falar de racismo, xenofobia e exclusão desde que isso venha embalado em situações cômicas, personagens excêntricos e conflitos “leves”. O riso, mais uma vez, serve como salvo-conduto.

A premissa do filme já carrega uma ironia cruel. Uma pequena aldeia francesa vota unanimemente para receber refugiados ucranianos em troca de subsídios governamentais. A solidariedade, aqui, nasce condicionada: ela é econômica, burocrática e, sobretudo, seletiva. O erro administrativo que leva à chegada da família Fayad, vinda da Síria, não funciona apenas como motor narrativo, mas como dispositivo político. O problema não é a presença de refugiados — é quais refugiados.

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O roteiro é inteligente ao não transformar a família síria em caricatura ou instrumento de piedade. Ao contrário, os Fayad frustram todas as expectativas projetadas sobre eles: são educados, sofisticados, afetivos, plenamente capazes de ocupar aquele espaço social que, supostamente, não lhes pertenceria. E é justamente essa normalidade que desestabiliza a aldeia. O preconceito que emerge não é o do ódio explícito, mas o da convivência forçada, do desconforto disfarçado de cordialidade, da xenofobia que se apresenta como “diferença cultural”.

A comédia surge do atrito. O filme entende que o riso mais potente não vem do exagero, mas do reconhecimento. As situações são engraçadas porque são absurdamente familiares: comentários atravessados, microagressões, gestos que revelam uma hierarquia racial nunca assumida, mas sempre operante. A Europa que Vizinhos Bárbaros retrata é progressista no discurso e profundamente conservadora na prática — aberta à diversidade desde que ela não confronte seus privilégios, sua branquitude e sua ideia de civilização.

O título do filme funciona quase como uma provocação direta ao espectador. Ao longo da narrativa, a pergunta se inverte constantemente: quem são os bárbaros? Os que fogem da guerra ou os que se dizem civilizados enquanto reproduzem exclusões cotidianas com naturalidade assustadora? O filme acerta ao deslocar essa violência do campo do espetáculo para o campo do social, mostrando que o racismo mais persistente raramente se manifesta em atos extremos — ele vive nos gestos mínimos, nos silêncios, nas piadas ditas “sem maldade”.

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Se há limites, eles estão menos na proposta e mais na forma. Em alguns momentos, o roteiro opta por resoluções rápidas demais, suavizando conflitos que poderiam ser mais incômodos. A comédia, por vezes, amortece o impacto político em vez de tensioná-lo até o fim. Ainda assim, Vizinhos Bárbaros jamais perde de vista seu alvo: desmontar a falsa neutralidade de um discurso humanitário que só funciona quando o outro é facilmente assimilável.

Assim como o bobo da corte, Vizinhos Bárbaros sabe até onde pode ir. Sua crítica é clara, mas contida; política, mas cuidadosamente palatável. O filme expõe uma Europa que se diz solidária, mas cuja empatia é profundamente condicionada — racializada, seletiva, dependente da manutenção de privilégios históricos. O riso não destrói essa estrutura, mas a ilumina o suficiente para que suas fissuras se tornem visíveis. E, nesse gesto controlado, talvez resida tanto a força quanto o limite do filme.

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Caique Henry
Caique Henryhttp://estacaonerd.com
Entre viagens pelas galáxias com um mochileiro, aventuras nas vilas da Terra Média e meditações em busca da Força, encontrei minha verdadeira paixão: a arte. Sou um apaixonado por escrever, sempre pronto para compartilhar minhas opiniões sobre filmes e músicas. Minha devoção? O cinema de gênero e o rock/heavy metal, onde me perco e me reencontro a cada nova obra. Aqui, busco ir além da análise, celebrando o impacto que essas expressões têm na nossa percepção e nas nossas emoções. E-mail para contato: [email protected]
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