O Brasil é um país de imensa riqueza cultural e diversidade, marcado historicamente por lutas incessantes por espaço e visibilidade. Durante grande parte de sua trajetória, corpos e identidades foram sistematicamente negados pela própria estrutura social. Essa exclusão ocorreu devido a uma série de fatores, como a prática de religiões que não se alinhavam ao catolicismo ou ao protestantismo evangélico, a cor da pele, o gênero ou a sexualidade das pessoas. Tudo o que destoava dos padrões rigidamente estabelecidos pela elite burguesa era silenciado ou marginalizado, reforçando as desigualdades e dificultando o reconhecimento pleno da pluralidade que define a nação.
Assim como em qualquer movimento social, a transformação começa com organização. Quando uma classe se une, se mobiliza e luta por seus direitos, as chances de alcançar mudanças concretas aumentam significativamente. É na força da união que a burguesia, tradicionalmente detentora do poder, se vê pressionada e desafiada. Dentro desse contexto nasceu o Ballroom, um movimento artístico e cultural que emergiu nos Estados Unidos, mais precisamente em Nova York, durante as décadas de 1970 e 1980. Esse movimento floresceu nas margens das comunidades negras e latinas LGBTQIA+, destacando-se especialmente entre pessoas trans e drag queens. Essas comunidades, frequentemente excluídas tanto do mainstream quanto da própria cena gay branca da época, encontraram no Ballroom um espaço de expressão, acolhimento e celebração de suas identidades. Mais do que uma forma de arte, o Ballroom tornou-se um ato de resistência e sobrevivência em meio a uma sociedade que insistia em invisibilizá-las.
O surgimento do Ballroom está profundamente enraizado em um contexto de marginalização social, racismo, homofobia e transfobia, tornando-se um grito de luta e identidade para comunidades historicamente excluídas. No Brasil, um país de maioria negra, onde diversas minorias foram e continuam sendo sistematicamente negligenciadas, o Ballroom encontrou um terreno fértil para florescer. Jovens LGBTQIA+ expulsos de suas famílias biológicas viram nesse movimento não apenas um espaço de expressão, mas também um refúgio. No Ballroom, surgiram lares simbólicos liderados por figuras maternas e paternas, conhecidas como “mães” e “pais”. Essas casas iam muito além de estruturas físicas; elas se tornaram verdadeiras redes de apoio emocional, social e cultural. Ofereciam proteção, pertencimento e a possibilidade de reconstruir famílias escolhidas, um conceito essencial para aqueles que enfrentavam rejeição e violência.
Somos seres intrinsecamente sociais, movidos pela necessidade de pertencimento e interação com o outro. O convívio social não é apenas um desejo, mas uma condição fundamental para a vida humana. Agora imagine viver em uma sociedade que, desde o início, marginaliza sua existência, rejeita sua identidade e nunca lhe oferece a oportunidade de se compreender plenamente. Em vez disso, há sempre alguém pronto para negar quem você é, impondo uma identidade que não é a sua. Essa rejeição gera uma solidão forçada, não natural, criada pela própria estrutura social. É nesse vazio que o Ballroom surge como um espaço de resistência e libertação. Ele oferece um refúgio onde corpos historicamente silenciados podem ser exatamente quem são: livres, autênticos, belos, reais. Ali, vidas antes apagadas encontram brilho, sonhos são alimentados, talentos são celebrados.
Gosto particularmente de como Salão de Baile captura, por meio dos relatos, a essência de uma comunidade que transcende suas bases: é uma família. Uma família formada por mães que cuidam e protegem seus filhos, mesmo que simbolicamente, oferecendo não apenas amparo, mas também coragem e um lugar ao qual chamar de lar. A palavra “pertencimento” ecoa com força aqui, e não hesito em usá-la repetidamente, pois ela é o coração pulsante deste filme. Salão de Baile é, acima de tudo, uma obra sobre o pertencimento: de pessoas negras, de pessoas não-binárias, de pessoas trans e travestis, de corpos gordos e magros, de indivíduos que a sociedade frequentemente rejeita, mas que aqui encontram acolhimento e voz. É uma celebração da humanidade em toda a sua pluralidade, um retrato vibrante de vidas que, em sua resistência, brilham com autenticidade e beleza.
Em Salão de Baile, a câmera não apenas registra; ela declara: “Eu te vejo, e eu te admiro.” É uma câmera que compreende a dor daqueles corpos, que acolhe com delicadeza enquanto encoraja cada estrela a brilhar em sua plenitude. Essa é uma obra que traduz a essência do Ballroom, um espaço de celebração da identidade, com uma estética profundamente marcante: vibrante, repleta de cores, movimento e um ritmo pulsante que enaltece o corpo e sua liberdade. O mais fascinante é como Juro e Vitã conseguem traduzir essa energia para a linguagem cinematográfica. A decupagem revela uma câmera intimista, que respeita, mas que também é intensa e dinâmica, refletindo o espírito vibrante do Ballroom. A imagem se constrói com um uso habilidoso de zoom-ins e zoom-outs, enquanto a montagem pulsa no mesmo ritmo frenético e eletrizante das batidas da pista.
Os bailes, ou balls, são eventos marcados pela competição, onde os participantes desfilam, performam e disputam em diversas categorias, celebrando sua expressão individual e coletiva. De certa forma, Salão de Baile assume essa mesma postura performática diante do espectador. O filme desfila para nós uma cultura muitas vezes desconhecida, mas profundamente significativa, revelando sua riqueza e importância com a mesma graça e intensidade de uma apresentação nas pistas do Ballroom. Mais do que um retrato, o longa se transforma em uma festa, convidando o público a mergulhar nesse universo lindo e necessário.
Filme assistido à convite da Retrato Filmes. O documentário estreia no dia 5 de dezembro de 2024 em todo o Brasil.