seg, 23 dezembro 2024

Resenha | Álbum O som do litoral

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Confesso, meus caros leitores, que foi há pouco tempo que comecei a me interessar mais profundamente pela música. Sempre fui uma pessoa com gostos restritos nessa arte, ouvindo repetidamente o mesmo estilo e gênero: o rock, minha grande paixão musical. Contudo, em 2024, decidi ampliar meus horizontes e explorar novos universos sonoros, especialmente os da música brasileira. E, para minha surpresa, um dos gêneros mais populares atualmente no país, o rap/trap, acabou despertando meu interesse – algo que, até então, parecia improvável. O responsável por essa transformação foi um artista em particular: Mago de Tarso. Cantor, rapper e trapper pernambucano, ele carrega em sua arte as vivências de Cajueiro Seco, bairro onde cresceu em meio à luta diária como de muitos brasileiros.

No dia 6 de dezembro de 2024, Mago de Tarso lançou seu aguardado primeiro álbum, O Som do Litoral. Com esse trabalho, o artista pernambucano não apenas revigora o contexto do trap nacional, mas também direciona os holofotes para a vibrante cena musical de Recife. O que torna o trabalho de Mago singular é sua capacidade de fundir as brasilidades da música nordestina com a essência contemporânea do trap, criando uma sonoridade que é ao mesmo tempo autêntica e inovadora. Uma das características mais marcantes de sua obra é a maneira como ele transita pelos ritmos clássicos de Pernambuco, homenageando suas raízes ao mesmo tempo que as transforma. Em muitos aspectos, Mago me remete a Chico Science, o visionário que deu origem ao Manguebeat. Chico tinha a habilidade única de unir os versos densos e contestadores do Hip-Hop, a energia crua do rock e a força ancestral do maracatu, criando um movimento que transcendia estilos e tornava-se um grito cultural.

De maneira semelhante, Mago de Tarso parece estar construindo uma espécie de “Manguebeat 2.0”. Ele transporta os elementos nordestinos para um contexto atual, combinando-os com arranjos e tendências musicais modernas, como o trap e o rap melódico. O resultado é um disco que não apenas reflete a contemporaneidade, mas também dialoga com ela, mostrando que a arte é um reflexo do seu tempo, em constante renovação. O álbum O Som do Litoral é mais do que um marco na carreira de Mago; é um exemplo poderoso de como a música pode ser um espaço de reinvenção cultural. Ao misturar tradição e modernidade, ele reafirma a relevância da música nordestina no cenário nacional, enquanto constrói pontes entre o passado e o presente. Essa fusão rememora uma estética híbrida, simbolizada pelo manifesto mangue, a mesma que descreve o Recife como “um caranguejo com cérebro”. Não é à toa que Mago de Tarso é chamado de O caranguejo do trap, dando uma nova roupagem para o que Chico e Nação zumbi um dia criaram.

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Se Chico Science e Nação Zumbi canalizaram o espírito da lama, do caos urbano e da força vital do manguezal, o Mago de Tarso se volta para uma espécie de “mangue cosmopolita”. Sua música mantém o suingue do maracatu e a pulsação do baixo característico, mas incorpora beats do rap que podem ser ouvidas tanto no mangue quanto em metrópoles distantes. O lirismo, outro pilar do mangue beat, também encontra uma abordagem renovada. Enquanto clássicos como Da Lama ao Caos narravam histórias de resistência coletiva e identidade cultural, Mago de Tarso adota uma abordagem mais introspectiva, marcada por um existencialismo profundamente enraizado em sua vivência local. Em suas composições, ele trata de cenários e referências que todo recifense reconhece, transformando a geografia da cidade em uma paisagem emocional. Ao mesmo tempo, suas letras exploram intensamente sua própria luta pessoal, criando um diálogo íntimo entre o individual e o coletivo

Em termos sonoros, há respeito e ruptura. Os ritmos nordestinos tradicionais ainda são o coração pulsante das composições, mas convivem harmoniosamente com beats fragmentados e sintetizadores modulados. Essa fusão traz à mente o espírito experimental do mangue beat original, mas com um direcionamento mais voltado à introspecção e menos à ebulição coletiva das ruas. O “Mangue Beat do Mago de Tarso” não é apenas música; é um manifesto de que o movimento iniciado nos anos 90 não estava preso a uma época, mas sim a uma atitude. É como se ele estivesse declarando que o mangue ainda pulsa, e que esse pulsar pode nos levar a novos e inesperados territórios sonoros.

Em O Som do Litoral, Mago de Tarso parece abraçar de forma ainda mais profunda as características do rap nacional, entregando canções intensas e com narrativas poderosas. É como se cada faixa fosse um manifesto, um grito afirmativo de que ele está aqui para marcar território, provar seu valor e deixar claro que não é apenas mais um na cena. Suas letras transbordam particularidades e propósito, ecoando a luta e a determinação que definem sua trajetória.

Mago de Tarso demonstra um apreço por Recife admirável. Sua ambição não se limita a alcançar o topo; ele quer levar sua cidade junto com ele. Em sua trajetória, Recife não é apenas um cenário de fundo, mas uma protagonista ativa, representada em suas composições. Mago carrega consigo os milhões de habitantes da capital pernambucana, transformando a identidade recifense em uma força motriz. E, de fato, se há algo que define o recifense, é sua união e orgulho pela própria terra – ou melhor, como gostamos de carinhosamente chamar, “meu país”. Um povo arretado, apaixonado por sua cultura, sua história e suas lutas. Mago entende profundamente essa essência e a utiliza como combustível para sua arte e sua ascensão. Mais do que um artista individual, ele se torna um símbolo de mutualismo cultural: ao se projetar, ele também projeta Recife, e, ao exaltar sua cidade, encontra nela a força para se impulsionar.

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Caique Henry
Caique Henryhttp://estacaonerd.com
Entre viagens pelas galáxias com um mochileiro, aventuras nas vilas da Terra Média e meditações em busca da Força, encontrei minha verdadeira paixão: a arte. Sou um apaixonado por escrever, sempre pronto para compartilhar minhas opiniões sobre filmes e músicas. Minha devoção? O cinema de gênero e o rock/heavy metal, onde me perco e me reencontro a cada nova obra. Aqui, busco ir além da análise, celebrando o impacto que essas expressões têm na nossa percepção e nas nossas emoções. E-mail para contato: [email protected]