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Início Cinema Revisitando Insônia, o neo-noir esquecido de Christopher Nolan

Revisitando Insônia, o neo-noir esquecido de Christopher Nolan

Robin Williams e Al Pacino vivem dinâmica de gato e rato na única ocasião em que contracenaram.
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A essa altura, talvez nove em cada dez cinéfilos tenha chegado à conclusão de que Insônia se perdeu no tempo. O suspense policial lançado em 2002, remake da produção norueguesa de mesmo nome, parece minúsculo perto das ficções científicas mirabolantes de Christopher Nolan. Apesar disso, a proposta intimista contribui para destacar a subjetividade do diretor, o qual articula com eficiência uma de suas temáticas mais recorrentes: a culpa. Quem a carrega desta vez é Will Dormer (Al Pacino), policial responsável pela morte acidental do colega Hap Eckhart (Martin Donovan) durante uma investigação de homicídio no Alasca. Preso no estado onde nunca escurece, ele passa a ser atormentado pelo ocorrido conforme encara a própria ruína e tenta solucionar o crime sozinho. Como se isso não bastasse, a presença de uma figura chave em ambos os casos agrava a situação, deixando o protagonista à mercê de um julgamento que conta até com luz do sol para definir a sentença final.

O clássico independente Amnésia, de 2000, marca a primeira investida de Nolan com o peso na consciência. Ao longo do filme, um homem procura obsessivamente pelo assassino da mulher para, no final, descobrir que ele mesmo a feriu involuntariamente enquanto acometido pela condição de esquecer memórias recentes. Em Batman, o fato de Bruce Wayne ter presenciado os pais serem alvejados por um assaltante o coloca na obrigação de se tornar uma espécie de vigilante do crime na cidade em que eles prosperaram. O personagem de Leonardo DiCaprio no centro de A Origem se martiriza, tanto na realidade quanto em sonhos, por ter causado o suicídio da esposa ao literalmente inserir uma ideia na mente dela. De outro lado, Oppenheimer traz o criador da bomba atômica em conflito moral após ser confrontado com a eficácia da explosão nas cidades de Hiroshima e Nagasaki.

De volta ao neo-noir, a culpa deixa o plano de fundo do desenvolvimento e se torna fio condutor da narrativa. Na sequência de abertura, Dormer (cuja sonoridade do sobrenome se assemelha ao verbo dormir em português e francês) esfrega uma mancha de sangue da camisa como se tentasse ocultar rastros de algum ato ilícito. Posteriormente, entendemos que, na verdade, as imagens são um flashback da ocasião na qual ele precisou plantar evidências para incriminar um real sequestrador. “É isso o que eu faço, atribuo culpa”, diz o policial ao confidenciar a história a recepcionista do hotel onde está hospedado. Essa dinâmica enfim se inverte quando ele atira no parceiro. Durante as noites seguintes, fica difícil discernir se a insônia se deve às lembranças de Eckhart, neste ponto se misturando a lampejos do passado em cortes rápidos, ou ao sol da meia noite, que literalmente incide luz sobre o ato com o objetivo de forçar seu autor a encará-lo diariamente.

Somado ao onipresente clima do Alasca, o tormento do policial é atenuado pelas constantes investidas de Walter Finch. Quando a dupla se encontra após um primeiro contato à distância, o escritor vivido por Robin Williams, também intérprete de outro criminoso em Retratos de uma Obsessão, pauta a conversa na corrupção moral que os torna cúmplices. Ao ser confrontado, Finch não se preocupa em contestar as acusações de pedofilia, tampouco nega a afirmação de que o assassinato de Kay Connell o teria feito se sentir especial. De forma mais ardilosa, no entanto, levanta a possibilidade de Dormer ter vibrado com a morte do colega, que estava prestes a fechar um acordo capaz de comprometê-lo. Esses exemplos, ainda segundo o antagonista, não anulam o caráter acidental dos homicídios praticados por ambos, mas colocam os autores como vítimas das circunstâncias que tem direito a redenção.

No terceiro ato, o personagem de Pacino enfim se rende ao discurso do oponente. Isso se deve desgaste físico e emocional enfrentado ao longo da narrativa, o qual finalmente compromete tanto o corpo físico quanto a capacidade de estabelecer um raciocínio lógico. Diante do recorde de seis noites consecutivas em claro, Dormer mal consegue se manter de pé e toda vez que pisca, flashes dos últimos dias parecem invadir sua visão delirante. Quando uma agente local descobre a verdade sobre Eckhart, ele admite pela primeira vez não ter certeza se realmente o confundiu em meio a neblina ou simplesmente viu naquele instante oportuno, a chance de se livrar de uma ameaça. A última cena do filme então constata a derrota do protagonista por completo. Instantes após se ferir durante uma troca de tiros com Finch, ele, ao invés de clamar por socorro, se mantem calmo e balbucia “Me deixe dormir”, indicando que o tormento recorrente da culpa só teria fim na morte.

Em retrospecto, Insônia se consolida como um inteligente e conciso estudo de caso. O roteiro, mesmo restrito a obra original, se faz relevante pela complexidade das personagens e o brilhantismo das atuações, enquanto a direção conta com um toque autoral que conduz o público através de sentimentos palpáveis. A partir do sucesso desse combo, cineasta então passou a concretizar projetos mais ambiciosos, os quais junto a altos investimentos do estúdio, conseguiram elevar a experiência cinematográfica. Além de uma ponte, no entanto, o suspense também ficou marcado como uma das últimas produções de médio porte a obter resultados expressivos de bilheteria antes delas se tornarem prioridade do DVD e do streaming. Considerando a resistência de Nolan à essas plataformas, não o veremos com exclusividade na internet tão cedo. Entretanto, se a alternativa for as salas de cinema, fica a certeza de que cada novo filme seu será, de qualquer forma, um grande lançamento.

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