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    Sábado de Clássicos | O Grande Golpe

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    Lançado em 1956, O Grande Golpe foi o primeiro longa-metragem dirigido por Stanley Kubrick, cineasta estadunidense que viria a se firmar como um dos mais influentes do mundo no Século XX. No filme, Johnny, após passar cinco anos preso, planeja um último golpe antes de se aposentar: o assalto a uma pista de corrida de cavalos. Para tanto, contará com a ajuda de um grupo de mais seis pessoas, cada um com sua função específica no ato.

    Ainda que se trate de um projeto de escala menor quando comparado aos trabalhos seguintes do diretor, O Grande Golpe já apresenta muitas das marcas que viriam a constituir sua assinatura. Numa carreira marcada por incursões em gêneros tão distintos como o terror (O Iluminado, 1980), a ficção científica (2001: Uma Odisseia no Espaço, 1968), a sátira política (Dr. Fantástico, 1964) e o épico (Spartacus, 1960), para citar apenas alguns, Kubrick estabeleceu-se como autor pela maneira quase obsessivamente minuciosa e controlada como lidava com a forma cinematográfica.

    Todos os seus filmes transparecem um elevado grau de rigidez formal que se faz sentir no manejo de elementos como a decupagem, a montagem, a fotografia, o som, a iluminação, entre outros. É um cinema que, independentemente do tema ou da premissa explorada, se apresenta ao espectador com a subjetividade do autor como ponta de lança. Por mais que se trate de uma afirmação de aplicação geral, há casos em que a exacerbação dessa subjetividade pode ser sentida de maneira mais palpável do que em outros. Se há autores que enxergam a matéria dos filmes como algo a ser explorado de baixo para cima, partindo-se do movimento do real como vocação originária do audiovisual e deixando que ele respire e se expresse mais livre e intuitivamente, há também os que entendem o cinema como veículo, como qualquer outra arte, para a manifestação de uma impressão pessoal acerca do mundo, uma construção que parte do parte do mental para buscar correspondência no mundo sensível. No caso desses últimos, dos quais Kubrick sem dúvida faz parte, é mais facilmente perceptível a presença de um quê de psicologismo preconcebido, de uma moral ou princípio-guia anterior à matéria do filme, o qual servirá como meio para a expressão dessa visão.

    Em O Grande Golpe, essa subjetividade, que no cinema de Kubrick é sempre mordaz, está expressa na visão impassivelmente fatalista que permeia a obra. Trata-se de um filme de assalto de estrutura típica, mas o diretor imprime sobre ele um senso de decadência moral e tragédia que prenuncia a todo instante os rumos tortuosos que a história tomará. Opções como a utilização da narração em voice over impessoal e onisciente e o enxugamento do desenvolvimento dos personagens acentuam a indiferença sobre eles, que são vistos mais como peças de um quebra-cabeças condenado a não se fechar do que propriamente como indivíduos dignos de consideração. Não é por acaso, também, que em vários momentos o filme flerte com uma lógica de comédia de erros, divertindo-se, duma posição afetivamente distanciada, com as inseguranças e precariedades humanas dos personagens.

    Interessante notar como Kubrick faz questão de acentuar o seu lugar como mestre a cujo controle não é dado às peças do jogo escapar. Entre todos os personagens que compõem o tabuleiro estabelecido em O Grande Golpe, aquele que mais se aproxima de um comportamento ideal para a consecução do plano que move o filme é Johnny, protagonista e mentor do projeto. Enquanto todos os demais envolvidos apresentam alguma vulnerabilidade pessoal capaz de prejudicar o sucesso do assalto – e o filme trabalha com essa expectativa de sabotagem a todo instante –, Johnny é resoluto em suas ambições e na conduta necessária para alcançá-las. Se os outros, ainda que brevemente, são apresentados como humanos e essa humanidade é encarada como falha capaz de suplantar o projeto, Johnny incorpora o perfil da técnica e da frieza, caminhando ao lado da abordagem da própria narrativa no sentido de privilegiar o procedimento em detrimento das pessoas.

    Assim, quando o filme se desloca do planejamento e chega à concretização do projeto, apresentada por Kubrick numa estruturação não linear para que acompanhemos os passos de cada um dos envolvidos e as maneiras como eles podem ir comprometendo o sucesso da empreitada, é sobre Johnny que recai a primazia da ação. É perto dele que o filme se posiciona nos momentos mais cruciais, acentuando seu papel de protagonista e força motriz da realização do plano. Há os demais, com suas fraquezas expostas em tela, e há Johnny, idealizado como cerne de tudo, quase num plano de infalibilidade.

    No fim da jornada, porém, Johnny também é humano e, como tal, peça do jogo proposto por Kubrick tanto quanto qualquer outro dos que habitaram a projeção. Suscetível, ainda que não à intensidade das paixões que fragilizavam seus comparsas, à implacabilidade e à indiferença moral da sorte ou do azar. A técnica, para o personagem, mas não para o diretor, traz apenas uma ilusão de controle num mundo voltado a suplantar os projetos do homem em sua pequenez. Um mundo em que não há escapatória, onde imperam a visão e os princípios eleitos pelo autor, esse de fato acima de toda sorte de intempéries, para guiar a obra.

    Se para Hitchcock o cinema não tem cena, mas espectadores sentados diante de uma tela na qual se projeta um mundo essencialmente mental, Kubrick faz questão, desde seu primeiro longa-metragem, de estabelecer-se como a fonte última desse universo que se materializa no ecrã. Não é gratuito, então, que na cena final, quando Johnny se vê emboscado por policiais e sua esposa o pede que fuja, ele responda, aquiescendo ao destino que o autor lhe impôs: “Que diferença isso faz?”. De fato, não há para onde correr no cinema de Kubrick, guia absoluto do espírito das suas obras e talvez um dos maiores encenadores que já houve, no sentido de criação de universo, imersão e direcionamento da percepção do espectador.

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