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    Sábado de Clássicos | Um Mundo Perfeito

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    Goste-se ou não, é difícil negar que Clint Eastwood é uma das figuras mais importantes da história do cinema moderno não só estadunidense, mas mundial. Seja como o ator que incorporou personagens emblemáticos do western no crepúsculo do gênero, seja como o diretor por trás de uma filmografia amplamente premiada, Clint é digno de lugar em uma mesa na qual a poucos seria dado sentar. Aqui, por ocasião do lançamento que se avizinha de Cry Macho: O Caminho Para a Redenção, 40º longa que recebe sua assinatura em 50 anos na cadeira de direção, é justamente o Eastwood diretor que nos interessa. E escolhemos, como ponto de partida para falar um pouco sobre ele, Um Mundo Perfeito, lançado em 1993, próximo à metade da carreira do realizador, e que, talvez por isso, guarda em si muitos sinais de um cineasta maduro em suas concepções de forma e conteúdo.

    Pode parecer pretensioso especular sobre esse ponto de maturidade em se tratando de um realizador que desde os primeiros trabalhos apresentou claramente as cartas do seu estilo e as referências de que bebia. A obra de Eastwood é, e não busca negá-lo, filha do tronco de diretores que estabeleceram o que passaria a ser visto como uma tradição clássica hollywoodiana, com John Ford sendo o nome mais comumente associado ao seu. A partir de certo ponto, porém, Clint se apodera dessas fontes para traduzi-las num estilo próprio, conciliando o trato clássico do realismo romântico com inflexões de ambiguidade que o permitiram se firmar, no cinema, como um dos mais relevantes observadores não apenas da sociedade estadunidense, sobre cujas tradições e contradições lança olhar na maior parte dos seus filmes, mas do ser humano em si.

    Humano, aliás, talvez seja a expressão mais adequada para definir Um Mundo Perfeito, cuja narrativa é centrada em Butch Haynes (Kevin Costner), que, após escapar da prisão, faz refém em sua fuga Phillip (T.J. Lowther), um menino de oito anos. A partir de tal premissa, o filme traçará sua narrativa em torno da caçada capitaneada pelo chefe de polícia Red Garnett (Clint Eastwood) e pela criminóloga Sally Gerber (Laura Dern). O enredo em si já sugere a estruturação clássica da narrativa, com uma expectativa de início, meio e fim estabelecida de antemão. O próprio prólogo, aliás, já entrega ao espectador que haverá um desfecho e qual será ele, como num sinal tranquilizador para que se atente ao percurso. “Este é o presente, Phillip. Aproveite enquanto dura.”, diz Haynes ao garoto, com extensão ao público, ainda no início da jornada que a obra acompanhará, e o diretor levará a sério conselho do seu protagonista.

    É que Um Mundo Perfeito, mesmo que seu esqueleto sugira a antecipação de um fim trágico, é um filme construído, antes de tudo, sobre momentos de presença. O que de início se apresenta como uma narrativa de gato e rato logo se converte em algo mais assemelhado a um road movie do que a um thriller. Haverá os pontos de tensionamento do conflito entre as partes – perseguidores e fugitivo – contrapostas pela premissa, bem como as passagens de maior arroubo dramático que Clint costumeiramente trabalha com tanta habilidade, mas é nos tempos fracos, nas aparentes elipses entre os grandes eventos, quando apenas se assiste à convivência e ao estreitamento da relação entre Haynes e Phillip ou mesmo às trocas entre personagens a priori tão distintos como Garnett e Sally, que reside o coração do filme. Os gestos mais mundanos têm, na visão proposta pelo diretor, tanta relevância quanto os mais grandiosos.

    Clint compreende que a evidência afetiva de sua obra, mais do que nos tipos rígidos que põe em tela – policial brucutu, criminóloga, bandido, criança –, se encontra nos indivíduos por trás das primeiras aparências. Erige-se, a partir dessa noção, um quadro marcado por perspectivas e experiências de vida assimétricas, muitas vezes contrapostas de modo aparentemente irreconciliável. Se tudo a uma primeira vista indica que a rota é de colisão, como de fato o mundo, ironicamente longe de perfeito, determinará que seja, o diretor está mais interessado em investigar, ao menos tanto quanto possível, as aproximações, os pontos de contato que fazem dos seus personagens reconhecíveis e comuns entre si; a medida em que, independentemente das marcas do passado e das expectativas do futuro de cada um, eles podem se encontrar e ser no presente, mesmo que por uma breve jornada, figuras que se entendem, completam e amparam.

    Não há bem e mal em Um Mundo Perfeito“não, eu não sou um bom homem; mas não sou o pior também.”, lembra Haynes próximo ao desfecho –, mas tampouco se trata de um produto com ambiguidade pré-fabricada para justificar um selo de pretensa maturidade. Eastwood vai às últimas consequências no enfrentamento das chagas de seus personagens, dotando o filme de um senso de deleteriedade que se faz presente em paralelo à verdade dos afetos desenvolvidos, sem que um fator anule o outro. Toda a narrativa é marcada por esse equilíbrio, mas a sequência que talvez melhor represente a abordagem em corda-bamba que concilia a crueza do lado vilanesco do protagonista com a singeleza dos seus atos mais generosos é aquela em que ele, após um momento de genuíno lazer com uma família que os acolhe de passagem, em que memórias da infância ao lado de sua mãe o tocam ao ouvir uma música antiga e dançar com a anfitriã, chega à beira de matar o marido dela quando ele é hostil com o neto, lembrando-o das feridas causadas pelo pai em sua infância. Ali, como num resumo de sua vida, memórias boas e más se cruzam como fantasmas que não abandonam o protagonista e despertam os traços mais doces e mais cruéis de sua persona.

    O drama é encarado com honestidade cortante, e os personagens suportarão os efeitos de seus atos e dos caminhos que os levaram até aquele ponto na mesma medida em que gozarão dos momentos de comunhão. Fatalismo e redenção se imbricam numa obra que sabe não lhe caber definir as pessoas que a habitam, mas apresentá-las ao espectador em todas as suas dimensões, com o maior grau de verdade possível, entendendo que todas essas facetas as tornam humanas, para além de qualquer pretensão de enquadramento.“Eu não sei de nada. Não sei de coisa nenhuma.”, declara Garnett após concluída a caçada que guia a obra. Também nesse espírito, imbuído de um humanismo que não faz concessões, importa a Um Mundo Perfeito, mais do que firmar alguma visão ou julgamento, capturar como matéria bruta o percurso dos personagens em um universo distante de qualquer idealização, mas não por isso menos real e legítimo em seus momentos de beleza.

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