Seria um exercício interessante assistir a uma versão do roteiro de Possessor filmada como se fosse um episódio extra de Black Mirror. Apesar das muitas qualidades da série, o seu esquema ilustrativo das temáticas envolvendo tecnologia nem sempre tem espaço para ir muito além da lógica fechada da premissa, o que, em alguns casos, impede os capítulos de crescerem para além de seu “comentário social”. Já o novo filme do promissor Brandon Cronenberg (filho do mestre do body horror David Cronenberg), pelo contrário, é de uma contundência e liberdade admiráveis, ainda mais em tempos de projetos tão previamente calculados em torno de subtextos e adequação à tendências – especialmente dentro do terror.
Partindo de uma trama simples e já trabalhada pela ficção científica várias vezes, Possessor trata de uma empresa especializada em fazer certas pessoas cometerem assassinatos para atender ao interesse de seus clientes/corporações. Para tanto, tem-se a agente Tasya Vos, personagem principal, que entra em uma máquina de implante cerebral, é transportada para o corpo da pessoa da vez e a leva a cometer o crime. Não somente esse trabalho vai provocando danos irreversíveis a ela, como uma nova e imprevisível missão vai desafiar seus limites emocionais e físicos, mais até do que apenas puxar o gatilho.
Além de contar com um elenco formidável, encabeçado por Andrea Riseborough e Christian Abbott nos respectivos papéis de “possuidora” do corpo e corpo “possuído”, Possessor é um exercício formal perfeitamente equilibrado entre a precisão e a experimentação. Brandon Cronenberg estabelece uma lógica inteligentíssima na maneira como capta o pouco que o filme tem de “banal” e, em seguida, toda a sua dinâmica temática de controle. As cenas iniciais da personagem em casa com seu marido e filho são gravadas com câmera na mão e notáveis espaços vazios; se uma coisa poderia provocar uma relação mais humana com eles, a frieza das cores e os seus “nadas” tratam de tornar esses momentos os mais propositalmente pragmáticos. Já quando a missão realmente tem início, parece que o diretor se diverte mais expondo sua câmera: planos holandeses aéreos, transições estilosas, planos-detalhe. É como se a partir do momento em que a protagonista está no controle de outro corpo, a própria forma visual de Possessor acompanhasse isso.
Ao mesmo tempo, chega um nível em que o caos vai tomando conta do filme de tal forma – e a violência toma ares tão brutais – que até dá a sensação de estar dentro de pesadelo dos mais intensos, dos quais enquanto se vive acredita-se piamente serem reais. Claramente Possessor também tem o interesse em desestabilizar a plateia a partir de sua imprevisibilidade; sabe-se, desde o princípio, que aquela missão tem tudo para dar errado – e como essa envolve uma violência tão extrema, entende-se também que esse “errado” representa o pior possível. E ainda que mote geral seja de uma ficção científica à lá Black Mirror, a perturbação provocada por esses imprevistos situacionais e seus resultados gráficos é tão grande que o filme acaba se inserindo sem muita cerimônia no horror – e dos mais francos.
O diretor, no entanto, não se preocupa tanto de explorar as consequências psicológicas desse tipo de situação – embora até o faça, a seu modo (visual) – ou mesmo de tecer qualquer comentário genérico a respeito desse tipo de tecnologia. O foco de Possessor está muito mais em uma ordem sensorial, de possibilidades formais e narrativas que essa história pode render sem precisar se esticar além do necessário. Ou seja, é realmente uma daquelas raridades de filme: não quer ser muito mais do que é, mas leva extraordinariamente a sério o que é. Nenhum outro trabalho de 2020 conseguiu resultados tão perturbadores até o momento – e não vai ser nenhum pouco fácil conseguir nos próximos meses.