Tão antigas quanto o tempo, são as rixas entre os seres humanos. Como a ciência ainda não nos possibilita viajarmos através do cosmos, a partir da criação do cinematógrafo tornou-se exterior a confirmação de que, sim, a competitividade não poupou nenhuma Era. E, se a inveja de Salieri por Mozart em Amadeus (Milos Forman, 1984) provou que a arte não sai ilesa dessa história, é normal que a mesma tente reconstruir uma temática que rende bons frutos. Logo, a análise dos embates entre espécimes iguais pode ocorrer quando bem entender, mas especialmente em momentos específicos em que digladiar é um costume. No contexto da Guerra dos Cem Anos, O Último Duelo (2021), do renomado diretor Ridley Scott, dois ex-amigos se rendem ao espírito armígero e exemplificam que, em uma luta, a vitória vem também com o sangue do outro.
Inspirado no romance de 2004 escrito por Eric Jager, The Last Duel: A True Story of Crime, Scandal, and Trial by Combat in Medieval France, o filme mostra a França envolvida em uma sequência não ininterrupta de batalhas contra a Inglaterra que culminaram em 116 anos de guerra, e que é o núcleo da narrativa do longa-metragem. Enquanto Jean de Carrouges (Matt Damon) é um cavaleiro de nome relevante devido a hereditariedade de sua família, Jacques Le Gris (Adam Driver) é um escudeiro e membro da corte, assim escolhido por meio da fidelidade de seu parceiro conde Pierre d’Alençon (Ben Affleck), um dos mais poderosos do território francês. Embora ambos caminhassem em paz, uma acusação de Marguerite (Jodie Comer), esposa de Carrouges, acerca de um estupro cometido por Le Gris, estremecerá a relação, trazendo à tona uma sede insaciável por vingança, humilhação e, consequentemente, morte. A fatalidade, porém, não ocorrerá até que o “duelo” – estabelecido no título do filme – consagre o campeão que levará a honra e a glória.
Para além da matéria física, O Último Duelo constrói um desafio assentado na moralidade. Ou seja, posto mais à prova do que suas habilidades com artifícios bélicos, são os valores correlatos ao temperamento dos personagens, com foco maior em Carrouges e Le Gris. Crescentemente entendível, as razões pelas quais atitudes são tomadas e opções são realizadas implicam diretamente na composição de toda trama e, naturalmente, na apuração da versão de cada protagonista, incluindo Marguerite, sobre o fato que norteia as nuances do enredo: uma violação sexual. Portanto, o que de início é uma decisão para o espectador, ao longo do tempo pode ser refutado. As diversas “verdades” transformam-se em fragmentos de um mesmo enredo, revivido várias vezes por uma cronologia que passa tão rápido que é difícil de acompanhar. Amparado por um roteiro que instiga e revela a cada diálogo, o significado por trás das ações dos personagens só se encaixam totalmente ao chegar em um denominador comum.
Até atingir este consenso, o filme trabalha sua diegese de forma paciente. Para obter sensações fundamentais, tais quais a indignação, o longa-metragem difere e une seus protagonistas; a frieza e ao mesmo a simpatia de Le Gris, que inclusive conquistara a proteção do cínico porém respeitado conde Pierre, e a rudez juntamente com a firmeza de Carrouges, que aparentemente defende com unhas e dentes sua esposa, passam pela consideração de heróis, vilões e somente humanos conforme o fluxo da obra. Contudo, a única de fato avaliada é Marguerite. Podada de mencionar qualquer opinião mais enfática, o que se sabe é que a personagem é a mandante detrás da denúncia do cavaleiro Carrouges, que resultou no veredito do rei Carlos VI a favor do combate mortal dos rivais em busca do “merecimento” da razão. Entretanto, a mulher, quando dada a ela sua devida atenção, é capaz de fazer a lembrança da atualidade ser incontestável. Os questionamentos que a nobre carrega consigo e com seu relato é um mediador direto com 2021, e a transição de mais de séculos à frente só desenrola mediante o estarrecimento em volta da maneira não estarrecida com que uma agressão sexual sucede naquela época, respigando em hoje em dia.
Para ter veracidade, os acontecimentos necessitam de condutores verossímeis – o que não é problema para O Último Duelo. Matt Damon e seu bronco Carrouges se conecta indiretamente com seu inimigo Le Gris, homem impetuoso e estranhamente leal interpretado por Adam Driver, no compartilhamento de valores antiquados, ultrapassados e abusivos se atentado o mundo moderno, mas aceitáveis no mundo medieval. Entrelaçado com essas concepções – talvez a principal delas -, está o machismo tátil e quase gráfico que permeia as aparições da Marguerite de Jodie Comer, sempre contida como o estereótipo de uma boa dama. Logo, a direção de atores, tendo também como integrante, Ben Affleck, um dos produtores e roteiristas do filme, além de intérprete do impetuoso conde Pierre; designa firmemente o papel de cada um na obra como um todo, de maneira a serem pensados os gestos, olhares, feições, etc.
Já o cineasta Ridley Scott encontra-se novamente em sua especialidade: obrigar o cinema a extrair beleza de um cenário caótico. Esteticamente, essa grandiosidade é apalpada no design de produção, no figurino e na direção de arte historicamente dedicadas, assemelhando a, de certo, um panorama de guerra em que tudo, desde os suntuosos castelos até as vestimentas pouco práticas das mulheres, remete a um ambiente de ares pesados e tensamente perigoso. A sonoplastia, encarregada de tornar minuciosamente sonora a experiência de observar armas se chocando ou perfurando uma armadura, funcionam como um mergulho na imagem de câmera tremida e aura de video game no campo de batalha, dispondo – agora em todo longa-metragem – de um tom frio na paleta de cores que correspondem ao clima gelado da França. O diretor, contudo, não reduz seu trabalho a cenas de ação chamativas; pelo contrário, como fez em seu outro drama épico, Gladiador (2000), o aprofundamento psicológico altera tais sequências em elementos narrativos coadjuvantes, apesar de extremamente aguardados.
O Último Duelo não pode nem deve ser encarado como um filme sobre um confronto de dois homens, pelos motivos de não girar em torno do porquê da desavença de Le Gris e Carrouges e muito menos de uma probabilidade de trégua. O que realmente importa está no que a personagem Marguerite quer dizer; seu espaço de fala escasso, mesmo quando é atingida diretamente, serve como demonstração do quão sufocante é ser forçada a manter-se calada. Em mais uma realização brilhante de Ridley Scott, seu último trabalho é provocador e polêmico o bastante para ocasionar uma reflexão do espectador, embora seja passado em outros tempos. Será a sociedade tão diferente do que na Era medieval? Será que nossa evolução foi significativa o suficiente para mudarmos antigos conceitos? Será que a dignidade vale mais que a justiça? Perguntar exprime o que as obras audiovisuais desejam alcançar: o eco na mente do público. O objetivo aqui, então, foi concluído, com o bônus do tilintar das espadas no ouvido do espectador e um choque emocional, com direito a avaliação de pensamento, em sua cabeça.