Os Enforcados é um sopro de frescor em um cinema que ainda ousa pensar suas imagens. O cinema, afinal, é uma arte — e toda arte nasce de alguém com uma ideia, um gesto criativo que busca forma. É verdade que, nem sempre, o autor encontra a liberdade necessária para desenvolver plenamente essa ideia; muitas vezes, o mercado e as convenções engessam a expressão. Mas Fernando Coimbra, aqui, se afasta dessa lógica e realiza um verdadeiro estudo cinematográfico.
Mais do que contar uma história, Os Enforcados é sobre o próprio poder da imagem — sobre como a mise-en-scène não apenas ilustra, mas constrói sentido. Coimbra compreende que pensar a decupagem é também pensar a ética do olhar: onde a câmera se posiciona, escolhe o que quer mostrar e, principalmente, o que decide omitir. Há, nisso, uma herança de cineastas que entendiam a imagem como discurso, de Eisenstein a Godard, e que viam na organização do quadro uma forma de filosofia visual.
Ao refletir sobre sua mise-en-scène, Coimbra não apenas guia o espectador pela narrativa, mas o convida a perceber que toda escolha de enquadramento é também uma escolha de mundo. Enforcados é, assim, menos um exercício de estilo e mais um manifesto silencioso sobre como o cinema pensa — e nos faz pensar — através da imagem.
Os Enforcados é um filme que mergulha na violência, nas ilusões de redenção, no apetite pelo poder e em um (falso) moralismo marcante. Essa ideia moral se concentra de forma intensa em Valério (Irandhir Santos), personagem que atravessa uma metamorfose profunda ao longo da narrativa: de um homem inseguro, inferiorizado e impotente, para um líder calculista e traiçoeiro. Não se trata de um herói que cai — Valério já nasce contaminado pelas ambiguidades do seu meio —, mas de alguém que, num primeiro momento, ainda sonha com a possibilidade de escapar de um destino pré-escrito. Ele questiona as regras, experimenta a dúvida, sente o peso real da distinção entre certo e errado.

No entanto, como em uma tragédia aristotélica, há um ponto de inflexão irreversível, em que o contexto não apenas o corrompe, mas o absorve por completo. Nesse instante, a hesitação cede lugar ao deleite do poder, e Valério se torna uma figura quase mitológica na tradição dos anti-heróis — uma espécie de Scarface sociopata. Aqui, a mise-en-scène de Fernando Coimbra não apenas acompanha essa transformação, mas a potencializa, criando um retrato incômodo de como a violência, quando legitimada pelo ambiente e alimentada pela ambição, não apenas destrói, mas seduz.
Por outro lado, temos Regina (Leandra Leal), que se impõe como a verdadeira força motriz dessa narrativa. É Leandra quem, de fato, impulsiona Os Enforcados, encarnando uma mulher de moral ambígua, moldada pela luxúria e pela ânsia por um marido mais viril e presente. Há nela um desejo quase mítico de reencenar, à sua maneira, o arquétipo de Bonnie e Clyde: anseia por um homem forte, mas é ela quem representa a força — e, sobretudo, a mente estratégica. Regina articula tudo de maneira quase instintiva, chegando a interpretar sinais do destino como confirmações de seu próprio caminho. Sua presença é a materialização de uma violência latente: não a violência explícita do gesto, mas a violência em estado potencial, carregada na composição cênica e no olhar, conduzindo o espectador a um desconforto constante diante de sua gradual e inquietante degradação mental.
Tudo em Os Enforcados é atravessado pela violência — não apenas a física, mas a simbólica, a sexual, a psicológica. O sexo, aqui, é mais do que um ato carnal: é a representação crua e perturbadora da união desse casal, em que Regina fantasia um estupro enquanto o próprio marido, o estuprador em sua imaginação, se perde em devaneios de uma persona mais potente enquanto saboreia uma traição conjugal. Os diálogos, impregnados de ameaças e tensões, carregam uma violência quase sutil, mas constante, como um veneno que se infiltra nas frestas de cada relação.
A violência explícita, no entanto, não é o único ponto de impacto — ela se cristaliza sobretudo quando Fernando elabora seus planos e deixa a câmera repousar sobre espaços vazios, impregnando-os de uma presença quase onipotente de morte e destruição. Nada na imagem é gratuito: cada enquadramento, cada composição, cada feixe de luz ou ausência dele, cada som e cada silêncio funcionam como um estudo clínico e poético sobre o estado mental diante da falsidade e do terror. É um cinema que entende que o sofrimento pode ser mais violento no silêncio do que no grito — e que, por vezes, a imagem estática carrega mais potência que qualquer cena de sangue.