seg, 23 dezembro 2024

Crítica | Volver

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Diferentemente do que ocorre em outros meios de expressão artística, por uma série de razões cuja sondagem demandaria muito mais linhas do que aqui seria apropriado gastar, são poucos os cineastas, sobretudo entre os que fazem carreira fora da indústria estadunidense, que conseguem furar a bolha da cinefilia mais dedicada e habitar o imaginário coletivo como autores de marca própria. Pedro Almodóvar é um dos que pode afirmar ter alcançado tal status, fazendo de seu cinema uma grife que remete a ideias muito bem estabelecidas.

Em linhas gerais, a obra de Almodóvar pode ser vista como um projeto de exploração maneirista do melodrama. Embora haja características reiteradas nos filmes do cineasta, como o uso expressivo das formas e cores, recurso mais comumente ligado ao diretor, o tratamento de dramas de apelo popular imediato, entre outras, elas quase nunca funcionam como muletas. Ao contrário, o diretor parece estar sempre buscando novas formas de modular essas marcas, concebendo filmes que, embora pertencentes a um tronco comum de autoralidade, destoam sensivelmente entre si. Inconcebível pensar, por exemplo, para ficar apenas em títulos da última década, que o thriller de identidade de A Pele que Habito (2011), o melodrama podado de Julieta (2016) e o drama introspectivo de Dor e Glória (2019) possam ser vistos como meras repetições de uma fórmula. E o mesmo pode ser dito em relação a Volver, filmado por Almodóvar antes de todos os outros citados, mas que também serve de exemplo da amplitude que o autor consegue imprimir em sua obra, ainda que dentro de marcos facilmente reconhecíveis.

O enredo de Volver gira em torno de Raimunda (Penélope Cruz). A um só tempo, ela precisa lidar com o delicado estado de saúde de sua tia – que afirma ainda receber visitas da mãe da protagonista, falecida há anos –, a hostilidade do marido, recém-desempregado, a necessidade de sustentar sua filha e a fragilidade emocional de sua irmã. A partir dessa multiplicidade de filões, não por acaso remissiva a núcleos de novela, o filme vai desenvolvendo sua narrativa, passeando por dramas de família e flertes com o sobrenatural conforme o espectador se familiariza às personagens.

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Esse ar novelesco, aliás, é o cerne do filme. Embora, como dito, haja conflitos que impulsionam a narrativa, interessa mais a Volver tornar o espectador testemunha da perenidade das relações mantidas entre suas personagens. A comunhão feminina orgânica e quase inabalável num cenário de múltiplas arestas a serem aparadas é a força motriz da obra. Todos os afetos positivos e toda a vivacidade, aqui, pertencem às dinâmicas travadas entre as personagens mulheres.

Dentro dessa lógica, é interessante notar o tratamento reservado às figuras masculinas. Os homens, em Volver, são retratados como corpos estranhos. Trata-se de elementos alienígenas que, quando não ameaçadores que devem ser rechaçados, são apêndices inofensivos utilizados para ilustrar alguma nova dimensão conferida às personagens femininas.

Sintoma disso, perceptível logo na primeira passagem mais relevante envolvendo um personagem masculino, é a forma como o diretor passeia por eventos extremos, como estupro e assassinato, com um ar casual. É, de fato, como assistir a uma novela. Sabe-se que haverá impactos sobre as personagens principais, mas as coisas são tratadas com um quê de transitoriedade, de dado passageiro que logo será substituído por outras questões. A morte de um personagem que não integra o núcleo daquelas que o filme se dedica a acompanhar constitui uma intercorrência lateral. Mero ruído que, quando muito, servirá para mover as relações entre as personagens femininas.

E não há nada mais condizente com a lógica que o filme estabelece para si do que isso. É que, como referido, é em torno das relações mantidas entre a protagonista e as mulheres ao seu redor que o filme ganha corpo. É quando elas estão em cena que o filme tem vivacidade e os conflitos realmente têm peso. São as questões delas que importam, e é enquanto elas não são resolvidas que o filme carrega um senso de vácuo a ser preenchido.

Faz todo sentido, portanto, que todos os caminhos percorridos pela obra, todos os percalços enfrentados nas 2h de projeção – e não são poucos, como em toda boa novela – confluam para que as personagens femininas possam se encontrar em cumplicidade. É como se toda a trajetória de Volver fosse um exercício de retorno delas ao que o autor enxerga como um estado de harmonia que, senão natural, se faz necessário como escudo frente a um mundo hostil. E talvez não haja cineasta – homem, é verdade – mais hábil a rechear esse mosaico de cores e nuances do que Almodóvar.

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Felipe Lima
Felipe Limahttp://estacaonerd.com
Formado em Direito. Palpiteiro em Cinema.
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