ter, 7 maio 2024

Crítica | Afire

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Christian Petzold (Phoenix), diretor cultuado que reúne uma pequena, mas fiel, legião de fãs, lançou seu novo filme, Afire, sobre um escritor mal-humorado que viaja com seu amigo para uma casa de férias isolada, com o objetivo aproveitar o suposto sossego do lugar para finalizar o livro no qual está trabalhando. Ao chegar em seu destino, no entanto, precisará conviver com companhias inesperadas, além da ameaça de incêndios que cerca a região.
Em uma mistura de drama com requintes eventuais de comédia, Afire é, antes de mais nada, um estudo de personagem sobre um “artista torturado”, ou pelo menos é assim que o protagonista se enxerga, até porque a única coisa que ele enxerga é a si próprio.


Leon é sisudo, aparece em quase todas as cenas do filme de cara fechada (sem nenhum exagero), não faz a menor questão de manter a boa vizinhança com as demais pessoas com quem divide a casa, não se mostra prestativo com os afazeres domésticos e tampouco se empolga com os convites de seu amigo, Felix, para se divertir, não tem interesse em nada a não ser terminar de escrever seu livro. Mas não se engane, Leon não é um viciado em trabalho, para ser mais precisa ele é um viciado em dizer que precisa trabalhar, sendo que raramente está de fato trabalhando.
Ele tem consciência da mediocridade de seu novo projeto, ainda assim rejeita as opiniões negativas tecidas por terceiros, e considera que a pessoa simplesmente “não entende nada de arte”. Afinal, alguém tão acostumado a olhar apenas para si mesmo não conseguiria suportar a ideia de que o problema é interno e, por isso, acreditar que a culpa é sempre do outro se torna um mecanismo de autodefesa contra sua própria natureza egoísta.
Apesar de ter por volta de vinte (no máximo trinta) anos, o personagem alterna entre se comportar como uma criança mimada incapaz de perceber qualquer coisa além do seu umbigo e um idoso rabugento que só colecionou amargura ao invés de sabedoria.


Por outro lado, Felix é seu extremo oposto, prestativo e carismático, o amigo estampa constantemente um sorriso no rosto e ignora – na maior parte das vezes – os comentários rabugentos feitos pelo protagonista. Sua leveza contrasta com a personalidade inflexível de Leon, ressaltando-a ainda mais.
O caminho dos amigos se chocam com o de Nadja, que cativa o escritor à primeira vista, e assim, ele se apaixona por ela antes de, sequer, serem oficialmente apresentados. Mas Afire não é um romance tradicional, longe disso, o relacionamento afetivo entre os dois se desenvolve de maneira própria, repleto de beleza, ainda que entre altos e baixos. O foco não se concentra em uma possível história de amor, mas sim nos impactos que conhecê-la teve sobre Leon.

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Os sentimentos ficam mais a cargo do subtexto – apesar de serem bastante claros – e aos poucos o rapaz quebra algumas de suas barreiras para se aproximar da garota. Nadja é a primeira pessoa que convida Leon a olhar para além de si, as vezes o faz indiretamente e, em outras, pede com todas as letras para que o personagem preste atenção a sua volta.
Ressalte-se, por fim, que a personagem feminina não é utilizada para “consertar” um homem sem salvação. O roteiro consegue contornar bem esse estereótipo e constrói uma mulher com personalidade e motivações independentes dos desejos do protagonista. A personagem é vivida por Paula Beer que já colaborou com Petzold em outras ocasiões, a exemplo de Undine, sua energia magnética somada à delicadeza com que é filmada por um colega de longa data, faz com que o espectador também se deslumbre pela moça.


Acompanhar a jornada emocional de Leon é um exercício de reflexão doloroso, é difícil não se enxergar, ao menos uma vez, no egocentrismo do rapaz, e não se perguntar quantas oportunidades deixamos passar por motivos não tão importantes assim, que só parecem fazer sentido naquela hora.
Há também outra questão, ainda mais urgente, que, tal qual todo o restante, passa despercebida pelo protagonista, a iminência de um desastre ambiental, constantemente anunciado que é prontamente ignorado por alguém cronicamente interessado apenas em seus problemas pessoais. Assim como na vida real, até aqueles que percebem a gravidade do perigo, encontram-se tão imersos em seus cotidianos que acabam ignorando-o, alheios às consequências daquilo que não os atinge diretamente (como eu disse, um retrato fiel de nossa realidade).


Justamente por focar na perspectiva de um único indivíduo, Afire levante questões sobre egocentrismo ao mesmo tempo que alerta para a necessidade de abrirmos os olhos para as demandas coletivas que nos cercam. Mas não o faz no mesmo tom de moralismo pedante tão característico do cinema hollywoodiano. Pelo contrário, nos mostra que até os personagens mais virtuosos estavam sujeitos à cegueira social e não os condena por isso. O propósito do longa não é apontar dedos, nem lecionar o espectador, apenas deixar o impacto da reflexão. E quando o filme terminar, será quase impossível não sentir esse impacto (muito mais forte do que em obras panfletárias).


Em contraste com o escapismo oferecido pela tranquilidade do local em que a trama se passa, Petzold combina as chamas metafóricas da paixão com chamas literais para criar amor e tragédia em Afire, um dos filmes mais sensíveis do ano.

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Raíssa Sancheshttp://estacaonerd.com
Formada em direito e apaixonada por cinema
Christian Petzold (Phoenix), diretor cultuado que reúne uma pequena, mas fiel, legião de fãs, lançou seu novo filme, Afire, sobre um escritor mal-humorado que viaja com seu amigo para uma casa de férias isolada, com o objetivo aproveitar o suposto sossego do lugar para...Crítica | Afire